por Roberto Eduardo Albino Brandão[i]
O silêncio aparentemente “natural” (provocado por um vírus), o silenciamento de uma ativista social e a tentativa de silenciar o pensamento divergente dentro das escolas. Três marcos da atual crise capitalista, que dizem muito da realidade ideológica brasileira. Três “totalidades parciais”, na teoria marxista, de grande repercussão e reflexão em nível nacional e internacional. Três eventos discursivos, cujas análises possibilitam reconhecer quem são “os de cima” (classe dominante) e quem são “os de baixo” (classe trabalhadora). Três fatos sociais/históricos que, no contexto de crise da sociedade do consumo, nos convocam a práxis revolucionária anticapitalista.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou situação de pandemia de Covid-19, causada pelo novo coronavírus, no dia 11 de março de 2020. Não cabe aqui discutir as origens desse vírus, tão pouco naturalizá-lo, mas sim entender como a sociedade, com base no modo de produção capitalista, reage a esse problema de saúde. Nesse sentido, o governo brasileiro, em pronunciamento histórico do presidente da república, em 24 de março, contrariando as orientações da OMS e as medidas adotadas em outros países, tentou minimizar o problema, pedindo a “volta à normalidade”/fim do “confinamento em massa”, alegando que os meios de comunicação espalham “pavor”, e ainda chamando a doença de “gripezinha”. Tal discurso, diferente do “distúrbio mental” propagado por alguns, segue uma visão estratégica, dentro de um alinhamento “político” e “econômico” com megaempresários, de que “o Brasil não pode parar”, pois a produção, circulação e consumo de mercadorias são a base do processo produtivo de acumulação de riquezas por parte dos capitalistas. Ora, se houvesse uma preocupação concreta com a vida dos trabalhadores, o governo deveria estar investindo todos os esforços no atendimento médico-hospitalar suficiente e acessível a todos/as, inclusive e principalmente no momento de pico da contaminação pelo coronavírus. Ao invés disso, além desses esforços não serem suficientes em nenhum país, no caso brasileiro, o Sistema Único da Saúde (SUS) segue submetido a essa mesma lógica de acumulação de riquezas, cercado de ideias privatistas de saúde como mercadoria e, portanto, de atendimento somente a quem possa pagar e/ou parcerias “público-privadas”, ou seja, negando o sistema público, único e gratuito para todos/as. Ressalta-se que o governo brasileiro dispõe de reservas internacionais que somam mais de 350 bilhões de dólares e, portanto, pode manter os trabalhadores em confinamento para se diminuir a curva de transmissão, diluindo a demanda médico-hospitalar ao longo do tempo.
O assassinato de Marielle Franco, ocorrido em 14 de março de 2018, soma-se as milhares de outras mortes, sempre trágicas e desumanas, principalmente de pessoas das favelas do Rio de Janeiro, com uma diferença. Trata-se de uma pessoa altamente politizada, ou seja, que entendia a totalidade do sofrimento dos oprimidos, que denunciava a opressão, que dava voz a ralé, e tomava partido, defendendo não o seu ponto de vista individual, mas de toda a classe trabalhadora. Cabe considerar que esse brutal acontecimento é historicamente recorrente no interior do Brasil, onde a grande mídia não alcança, uma vez que atentam (com frequência) contra a vida de líderes políticos que contrariam os interesses dominantes no campo. Nesse sentido, embora ainda não se tenha elucidado o crime, por parte das instituições de segurança pública, passados mais de 2 anos, importante considerar as inúmeras mensagens Fake News sobre o caso Marielle. Tais discursos públicos, sem qualquer base material, inclusive por políticos influentes e magistrados, tentam depreciar sua bandeira socialista e despolitizar o crime: “A minha questão não é pessoal. Eu só estava me opondo à politização da morte dela”[ii], diz a desembargadora Marilia Castro Neves à coluna da jornalista Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo.
Embora surgido em 2004, o programa Escola sem partido tomou vulto em 2015, por conta dos projetos de lei que foram apresentados e discutidos no Congresso Nacional, nas câmaras municipais e nas assembleias legislativas, defendendo, entre outros, “[…] que todo professor tem o dever ético e profissional de se esforçar para alcançar esse ideal” “[…] da perfeita neutralidade e objetividade”[iii], esforçando-se para não contaminar ideologicamente os alunos. Soma-se a isso, o fato do idealizador do referido programa tentar retirar de Paulo Freire, sem qualquer apoio popular, o título de patrono da educação brasileira. Gaudêncio Frigoto (2017, p.31)[iv], sintetiza muito bem esse movimento, ao refletir sobre sua gênese na crise do sistema capitalista:
Ao por entre aspas o termo “sem” da denominação Escola sem Partido, quer-se sublinhar que, ao contrário, trata-se da defesa, por seus arautos, da escola do partido absoluto e único: partido da intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto da xenofobia nas suas diferentes facetas: de gênero, de etnia, da pobreza e dos pobres, etc.
Para analisar os três fatos acima, é fundamental partir do pressuposto de que nenhum discurso é livre, sempre está inscrito historicamente, dentro de uma perspectiva ideológica, que não é tratada aqui como “falsa consciência”, mas que: “A ideologia é constituída pela realidade e constituinte da realidade. Não é um conjunto de ideias que surge do nada ou da mente privilegiada de alguns pensadores. Por isso, diz-se que ela é determinada, em última instância, pelo nível econômico” (FIORIN, 1998, p.30)[v].
Assim, observa-se que os discursos hegemônicos, inclusive incorporados por uma fração da classe trabalhadora, possuem forte construção social alicerçada nas correntes de pensamento de base racionalista, liberal, positivista e meritocrática. É sabido que o século XVIII sacudiu o mundo, com o poder da razão, através do Iluminismo. Tal período culminou com a revolução (francesa), sob o lema “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, onde as relações antagônicas entre classe dominante e classe trabalhadora se alteraram. No entanto, em se tratando de capitalismo mundializado, a classe trabalhadora vive ainda hoje sob a opressão da classe dominante:
A classe que chamo provocativamente de ralé é uma continuação direta dos escravos. Ela é hoje em grande parte mestiça, mas não deixa de ser destinatária da superexploração, do ódio e do desprezo que se reservavam ao escravo negro. O assassinato indiscriminado de pobres é atualmente uma política pública informal de todas as grandes cidades brasileiras. […] O acesso ao poder simbólico exige a construção de “fábricas de opiniões”: a grande imprensa, as grandes editoras e livrarias, para “convencer” seu público na direção que os proprietários queriam, sob a máscara da “liberdade de imprensa” e de opinião.[vi]
Torna-se evidente que “os proprietários”, os donos dos meios de produção, são os mesmos que enraizaram seus poderes econômicos no Estado, desenvolvendo a ideologia dominante capaz de lhe dar sustentação política. Essa constatação vem do próprio governo, um dia após o pronunciamento do presidente da república, ao criticar o confinamento dos trabalhadores, o presidente da Câmara Rodrigo Maia declarou:
Minha opinião é que nas últimas semanas nós tivemos uma pressão muito grande de parte de investidores. Aqueles que colocaram recursos na Bolsa de valores, esperando a prosperidade com a Bolsa a 150 mil pontos, a 180 mil pontos. A Bolsa caiu, como caiu no mundo inteiro, porque essa não é uma crise do Brasil, é uma crise mundial que atinge o Brasil.[vii]
Ao fazer com que o governo convoquem os trabalhadores a mover a máquina capitalista, ainda que com o sacrifício da própria vida, ao dificultar a elucidação de crimes que prejudiquem suas atividades lucrativas, bem como impedir o pensamento crítico que se oponha frontalmente a ideia de acumulação de riqueza e divisão social de classes, a classe dominante acentua ainda mais a crise. Mauro Iasi (2017)[viii] corrobora com essa reflexão, ao considerar que a burguesia comete “algumas falhas”, ao ameaçar a humanidade com sua ganância pelo lucro.
Tal “hegemonia ideológica”, caracterizada pela negação das determinações políticas que formam o cimento social, tenta jogar a culpa (da estagnação econômica, das mortes, do fracasso escolar) para o indivíduo trabalhador, naturalizando as relações de dominação e/ou apagando as contradições político-econômico-sociais, ou, simplesmente, escondendo-se atrás de uma suposta “neutralidade política”. Nessa conjuntura, que também estão presentes (encontra-se similaridade) o “golpe de Estado” impetrado pelo governo Temer, a prisão do ex-presidente Lula, a quebra de estabilidade do servidor público, o movimento de Educação a Distância, são incorporados discursos e práticas que obscurecem as tensões inerentes às relações dialéticas, quase sempre reproduzindo a ideologia da classe dominante, porém não sem resistência e luta.
Há quem não reconheça o quanto a sociedade capitalista nos faz pensar e agir individualistas e/ou na materialidade da luta de classes. Há quem, por exemplo, disponha de recursos financeiros para estocar alimentos e cumprir fielmente o confinamento, evitando se expor ao coronavírus, sem pensar nas pessoas que, ao não disporem dos recursos mínimos de subsistência, não podem se dar ao luxo de ficar em casa. Há quem feche os olhos para o que aconteceu com Marielle, banalizando sua trajetória de vida, bem como os processos judiciais contra professores que, durante suas aulas, tentam pensar nas formas de legitimação da sociedade. Qualquer pensamento está inscrito politicamente em nossa sociedade e refere-se a luta/batalha/guerra travada por sobrevivência da classe trabalhadora, seja no campo da resistência, da militância, e/ou da revolução anticapitalista. Na visão de Fernandes (1981), “A luta de classes não constitui um artigo de fé. Ela é uma realidade e só poderá desaparecer se o capitalismo for destruído”[ix].
Buscando demonstrar como esses três fatos sociais/históricos estão imbrincados com a atual crise capitalista, apreende-se que quanto maior o processo de concentração de riquezas, mais evidências surgem da superexploração de uma classe sobre a outra, seja no campo da saúde, da segurança e/ou da educação. As obras de Karl Marx ajudam na compreensão da exploração da força de trabalho, sistematizando diversas categorias fundantes do capitalismo. Embora sua época fosse bem diferente da atual, tais categorias permanecem auxiliando aos que se dedicam a “montar o quebra-cabeça” da economia política no contexto atual. Em seu esforço de atualizar as categorias “dinheiro”, “valor”, “mais valor”, “capital fictício” e “crédito”, David Harvey (2018, p.67)[x] desvela esse modo de produção capitalista, na configuração histórica específica do século XXI:
[…] o capital portador de juros se tornou uma força motriz independente e poderosa de acumulação por conta própria. O resultado não foi a emancipação humana da vontade e da necessidade, mas uma eficiência crescente da circulação e da produção de mais-valor, à custa de índices cada vez maiores de servidão por endividamento e alienação progressiva na política da vida cotidiana.
A alienação, que parte do acirramento da superexploração, dificulta a solidariedade de classe, nesses casos, entre os que podem e os que não pode trabalhar e/ou cumprir o isolamento social em época de pandemia, entre os que podem se manifestar correndo riscos e os que precisam da clandestinidade, entre os professores conservadores (reprodutores) e os progressistas (revolucionários), entre os trabalhadores formais e os “uberizados”, entre os “capitães do mato” e os “escravizados”. Ocorre que os inimigos da classe trabalhadora são aqueles que criam essas diferenças no mundo do trabalho.
Urge a práxis revolucionária[xi],
de refletir coletivamente, com a maior profundidade possível, sobre a visão de
mundo no conjunto da classe trabalhadora, unificando-a na luta efetiva
anticapitalista. No nível teórico, isso significa entender que a crítica ao
capitalismo perde sua potência, sempre que não agrega a fração da classe
trabalhadora mais “escravizada/precarizada” (ralé). Mas, no nível prático,
implica formar um movimento de massa, com ações concretas, para mudar o sistema
atual. Talvez tenha que se criar (ou não) um partido que aglutine todas as
forças revolucionárias. De tal forma que se combine esforços para dominar a
classe dominante, e retomar os ideais da revolução francesa, não no sentido de
uma revolução burguesa, mas em prol de uma revolução verdadeiramente proletária,
com justiça social para todos/as, ou seja, eliminando a divisão de classe e pôr
fim a propriedade privada.
[i] Professor de Biologia/Ciências das redes públicas de ensino, Mestre em Educação Profissional em Saúde. http://www.roberto.bio.br/blog
[ii] Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/desembargadora-marielle-foi-eleita-pelo-comando-vermelho/. Acesso em: 27 mar 2020.
[iii] Disponível em: http://escolasempartido.org/objetivos. Acesso em: 20 mar 2018.
[iv] FRIGOTTO, Gaudêncio (Org.). Escola “sem” partido: esfinge que ameaça a educação e a sociedade brasileira. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2017.
[v] FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Atica. 1998.
[vi] Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2017/09/1920559-escravidao-e-nao-corrupcao-define-sociedade-brasileira-diz-jesse-souza.shtml. Acesso em: 27 mar 2020.
[vii] Disponível em: https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,pressao-para-fim-do-isolamento-vem-de-investidores-da-bolsa-afirma-maia,70003248091.amp?__twitter_impression=true. Acesso em: 27 mar 2020.
[viii] IASI, Mauro. Política, Estado e ideologia na trama conjuntural. São Paulo: ICP, 2017.
[ix] FERNANDES, Florestan. O que é revolução. Ed. Brasiliense. 1981
[x] HARVEY, David. A loucura da razão econômica: Marx e o capital no século XXI. São Paulo: Boitempo, 2018.
[xi] Vide Poesia – Dissidência ou arte de dissidiar – Mauro Iasi