CARTA PARA PAULA FREIRE: subsídio à práxis crítico-político-pedagógica

Rio de Janeiro, 28 de outubro de 2021.

Querida Paula Freire,

Paulo Freire morreu. Embora, no atual contexto de opressão que nos submetem, seu legado esteja mais vivo do que nunca. Sei que você sabe disso, mas recebi, assim como todos os docentes da EJA (educação de jovens e adultos) da rede pública de educação onde atuo, a tarefa de escrever uma carta para Paulo Freire. Considero que escrever carta a um falecido é como “semear” feijão em algodão… Como experiência é bem interessante, porém falta a perspectiva da colheita do feijão e/ou de fazer uma feijoada. Como sou materialista, crítico as políticas verticalizadas, bem como nossos estudos sobre a obra desse saudoso educador popular, à luz da disciplina Fundamentos da pedagogia de Paulo Freire e sua importância para os campos da educação e saúde (Fiocruz/EPSJV), em que estamos matriculados, me pareceu mais significativo escrever-lhe essa carta com algumas considerações sobre minha práxis crítico-político-pedagógica.

Nas escolas por onde passei, no geral, em meus quase 30 anos de magistério, havia sempre um forte apego ao pragmatismo e ao tecnicismo, expressos nas cobranças exageradas das burocracias escolares imediatas, sem qualquer possibilidade de diálogo, quiçá pensar formas mais eficientes e eficazes do cumprimento das tarefas escolares, ou sua própria existência enquanto relacionadas as causas e consequências para o processo ensino-aprendizagem. É claro que isso não “nasce” dentro das escolas, faz parte da historicidade escolar brasileira, forjada no movimento escravagista e organizada pelo império[1]. Em paralelo, ainda convivemos com a religiosidade de dirigentes políticos, gestores, docentes e discentes, fato esse que acaba dificultando ainda mais a percepção das contradições no interior das unidades escolares, bem como apaziguando a luta entre opressores e oprimidos. Tais posições fechadas/irracionais ganharam escala em tempos de pandemia, com repercussões inclusive para o ensino de ciências. Para além do negacionismo, a intolerância religiosa acaba inviabilizando a argumentação/dialogicidade em base científica. Pode parecer exagero, em se tratando da escola como um todo, mas como explicar a recomendação de cloroquina entre professores(as), para o caso da covid-19, à revelia de todas as mídias de divulgação científica? Essa é nossa situação concreta.

Quanto a necessária dialogicidade, apesar das inúmeras redes sociais, muito ou quase nada é de fato discutido em profundidade. Cria-se, inclusive, espaços de “informes administrativos”, ou seja, exclusivos para a transmissão do “tem que”. Os poucos canais de comunicação, de via dupla, que ainda nos restam, estão restritos as eventuais “conversas de corredor”, ou grupos de WhatsApp (ainda sem pactuação quanto aos seus objetivos), limitados ao diagnóstico das situações de precariedade no ambiente de trabalho. Até mesmo o CE (Centro de Estudos), espaço conquistado de formação em serviço, foi capturado pelo pragmatismo, tecnicismo e religiosidade, onde o sistema impõe projetos “alienígenas” nas escolas, com datas preestabelecidas, principalmente de culminância, por exemplo, sem qualquer preocupação com a participação efetiva dos/as estudantes. Como subverter as relações antidialógicas nos espaços escolares? Nessa castração do livre exercício do pensar coletivamente, o que dizer de um CE dividido entre docentes da EJA I (anos iniciais) e docentes da EJA II (anos finais) e/ou professores de Educação Física, Artes e Inglês e professores das demais disciplinas? Por que tais divisões acontecem? Até mesmo a temática (comemorativa) centenário de Paulo Freire segue essa lógica ao partir do “tem que”, ao invés da realidade concreta problematizada pelas comunidades escolares, limitando a teoria freireana a uma visão fragmentária (leitura de pequenos trechos da obra), romantizada (prevalência da amorosidade em detrimento da justa raiva[2] e da luta dos oprimidos), aligeirada (tempos curtos) e/ou deturpada (esquivar-se do mundo para transcender[3]). Como refletir sobre Paulo Freire, junto aos estudantes, se, como professores não estamos imbuídos desse sentimento de coletividade e/ou comunhão de saberes e/ou democracia participativa. Nas palavras de Giroux (2021)[4]: “O espírito e a política de Freire não devem ser somente celebrados com alegria, mas imitados e fortalecidos em torno da construção de uma nova ética, revolucionária”. Na medida em que docentes e discentes não pautam suas próprias ações/reinvindicações, perguntas permanecem sem respostas: Quem são os(as) profissionais da educação que introjetam a “sombra” dos opressores? Quem são nossos(as) alunos(as)? Por que escolheram nossa escola? Qual é o maior desafio pedagógico da EJA hoje? O que é formar para “cidadania”? Qual PPP (Projeto Político Pedagógico) embasa nossos atos políticos, dentro e fora da escola? Quais perspectivas teórico-metodológicas embasam (ou deveriam embasar) nosso PPP? É possível construir um projeto pedagógico coletivo sem a participação de estudantes e corpo diretivo da escola? Como avaliar nossa prática coletiva e individual, enquanto educadores? Como cuidamos da nossa saúde coletiva dentro da escola? Qual(is) nossa(s) ideologia(s)? Qual é a real motivação para o retorno ao ensino presencial, por decreto, no fim do ano letivo?

Lembro-me bem da frustração juvenil, ao observa o pé de feijão morrer lentamente, enquanto suas pequenas raízes não encontravam nutrientes (no algodão). A mesma frustração volta a me assolar, ao ver alguns estudantes, professores e gestores não participarem da roda de conversa sobre Paulo Freire. A culpa não é dos indivíduos, mas de um sistema que não valoriza as construções verdadeiramente coletivas no chão das escolas. Aprendi isso com a EJA, sobretudo com sua história, não só da luta por garantia de direitos, mas também por suas ricas experiências de construção de textos coletivos em encontro de alunos/as. Precisamos resgatar essa história!

Ao revisitar as contribuições freireanas, olhando para o chão das nossas escolas, é possível ampliar a denúncia quanto a invisibilidade, a desescolarização, e ao desmonte das políticas públicas para a EJA, conforme constatadas por Nicodemos e Serra[5]. Certamente, ao considerar o ato de amor vinculado ao comprometimento com a causa do oprimido (sua libertação)[6], Paulo Freire continua contribuindo para uma práxis emancipatória, sobretudo em relação a sua crítica a “educação bancária”. Paulo Freire também critica a não intimidade dos saberes curriculares fundamentais ao aluno e a sua experiência social, afirmando que “Saber ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. Refletir sobre o trabalho pedagógico crítico, na perspectiva Freireana, é rever as teorias e práticas atuais voltadas a reprodução desse sistema desigual e excludente. Ler Paulo Freire, portanto, é ser instigado a transformar essa realidade, no sentido do trabalho coletivo, da “co-laboração”, nunca de uma transformação individual. Assim, também é possível anunciar nossa utopia (concreta), onde nossas ações pedagógicas emancipatórias se some as ações do MST (movimento dos sem-terra), e tantas outras marchas revolucionárias, no sentido de produzir/cultivar um mundo sem divisões entre classes sociais, sem apropriação privada do conhecimento, onde todos e todas sintam-se livres para discutir o seu fazer/pensar/ser. Tal como os/as estudantes nos ensinam, no caso de um jornal estudantil[7]. Assim, entre o pessimismo da razão provocado pela denúncia, e o otimismo da vontade do anúncio de uma nova visão societária possível, despeço-me com o lema da Conferência Nacional Popular de Educação – Conape 2022: “Educação pública e popular se constrói com democracia e participação social: nenhum direito a menos e em defesa do legado de Paulo Freire”.

Por fim, querida Paula, agradeço por você estar viva, pelo seu companheirismo nos estudos, e pela possibilidade real em continuar colhendo os “feijões” da reflexão-ação-reflexão, nesse solo fértil do materialismo histórico-dialético. Seguimos na práxis crítico-político-pedagógica, sem nos rendermos a cultura de celebridade à Paulo Freire, entendendo que não nos é possível evitar os conflitos, pois fazem parte das situações-limites que enfrentamos todos os dias, em nossas escolas, na busca do inédito-viável. Saudações amorosas e revolucionárias!

Roberto Eduardo Albino Brandão[8]

[1] Educação, Estado e democracia no Brasil / Luiz Antônio Cunha. 6 ed. – São Paulo: Cortez, Niterói, RJ, 2009.

[2] Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos / Paulo Freire. 1. Ed. – São Paulo: Paz e Terra, 20014.

[3] https://www.coipesu.com.br/upload/trabalhos/2015/10/pedagogia-freireana-e-teologia-da-libertacao-trilhando-caminhos-de-esperanca.pdf

[4] https://diplomatique.org.br/relembrando-paulo-freire-como-um-revolucionario-lutador-pela-liberdade-2/

[5] https://www.curriculosemfronteiras.org/vol20iss3articles/nicodemos-serra.pdf

[6] Pedagogia do oprimido / Paulo Freire. 17ª ed. -Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

[7] https://roberto.bio.br/blog/?p=314

[8] Mestre em Educação Profissional em Saúde, Professor de Ciências da Secretaria Municipal de Educação da Cidade do Rio de Janeiro e Professor de Biologia da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro.

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1 respostas para CARTA PARA PAULA FREIRE: subsídio à práxis crítico-político-pedagógica

  1. Professor Roberto, grata pela sua importante e corajosa reflexão. Sabemos que os tempos não são favoráveis à reflexões comprometidas com mudanças estruturais, e, por outro lado, coerentes com a proposta de Freire. Sabemos que sem essas reflexões não sairemos do lugar em direção à uma sociedade livre dos horrores que temos testemunhado. Tenha a certeza de que nós professores estamos nos preparando para um diálogo cada vez mais profundo e comprometido com os interesses dos estudantes de escolas públicas a partir de palavras como as suas. Tenha a certeza de que seu feijão não está no algodão e sim em uma terra adubada com a organicidade da vida alimentada pelo ar e pela água da sabedoria de palavras como as suas, que nos mantém coletivamente para avançar em direção à emancipação.

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