IMPACTOS DO PROCESSO DE NEOLIBERALIZAÇÃO, NO CONTEXTO DA INSERÇÃO DE QUALIFICAÇÃO PROFISSIONAL E ITINERÁRIOS FORMATIVOS, NO CURRÍCULO DA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

Roberto Eduardo Albino Brandão[1]

INTRODUÇÃO

É fato que as reformas neoliberais, especialmente destinadas à modalidade de educação de jovens e adultos (EJA), trazem mudanças curriculares significativas, tanto nas escolas de ensino fundamental, quanto nos colégios de ensino médio. Sob os discursos de melhoria na qualidade da educação, bem como evitar que o/a estudante, ao concluir sua etapa escolar, não consiga recursos financeiros suficientes para sobreviver, vai se legitimando o mesmo processo neoliberal na qualificação profissional (QP) e nos itinerários formativos (IF), estruturando o currículo em uma lógica mercantil de competitividade, individualismo, empreendedorismo e meritocracia nas escolas de EJA. Em contrapartida, embora o Projeto Político Pedagógico (PPP) seja uma obrigatoriedade legal, potencialmente capaz de elaborar propostas (populares) de QP e IF, assistimos uma pressão negativa às precárias tentativas de sua elaboração, quiçá de sua implementação, e quase nenhuma avaliação coletiva. Como esperar, da EJA, qualquer padrão de qualidade socialmente referenciada, se as mudanças curriculares, ao contrário de uma origem calcada nas discussões dos PPP, construídas no “chão das escolas”, são impostas por entidades/pessoas exógenas a EJA? Nosso propósito em relatar a experiência que tivemos, no ano de 2023 e até setembro de 2024, “tutorando” estudantes em QP e ministrando disciplinas voltadas aos novos IF, é desnaturalizar, aprofundar e externar as contradições acerca da hegemonia neoliberal, conforme evidenciada em diversas pesquisas especializadas nessa temática – Castro e Cruz (2024); Ventura (2011); Rummert (2007, 2019); Carvalho et all (2015), bem como através do movimento social Fóruns EJA Brasil em vários anos.

 

CAMINHOS METODOLÓGICOS

Considerando que o presente texto não possui caráter de pesquisa, o caminho metodológico utilizado para esta análise de experiência na EJA, no âmbito das políticas públicas para a educação (Municipal e Estadual do Rio de Janeiro/RJ), se dá através de situações reais vivenciadas pelo autor, enquanto professor de ciências e biologia da EJA. Esta vivência é corroborada por meio do exame documental, disponibilizado pelos poderes estatais e utilizado pelo autor em sala de aula, além da análise discursiva de gestores (membros da equipe diretiva das escolas e coordenações/gerências escolares), conforme procedimentos consensuados no âmbito da pesquisa “A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA SAÚDE NA ESCOLA NO TERRITÓRIO DE MANGUINHOS (RJ): estratégias de privatização na política pública”. Utiliza-se do materialismo histórico-dialético, bem como da pedagogia histórico-crítica, como recursos para refletir criticamente a realidade vivenciada por professores e estudantes da EJA.

 

DISCUSSÃO E RESULTADOS

Partimos do pressuposto de que a ideia de concordância tácita na introdução de um modelo de QP e/ou IF, calcado no empreendedorismo, como fundamento pré-político, e então proceder ao debate daquilo que se relaciona apenas ao detalhamento da execução, e não de nossas (educadores e estudantes da EJA) convicções político-ideológicas, é uma práxis antidemocrática. O necessário debate político é, com frequência, substituído por um arremedo de participação, supostamente democrática, naquilo que é superficial, ou seja, sem abalar os fundamentos epistemológicos que impactarão o processo ensino aprendizagem. Essas discussões horizontalizadas sobre QP e IF, entre gestores, professores e estudantes, contrastam com a verticalidade das políticas públicas impostas à EJA, quase sempre implementadas de forma aligeirada e desprovida de fundamentos sócio-históricos, estão inseridas na confluência de forças que regem a luta de classes, que não necessariamente transformam as relações de desigualdade e/ou injustiça social. Nesse sentido, foi possível sistematizar alguns pontos controversos:

1- Foco no mercado de trabalho: a EJA passou a ser vista como uma ferramenta para preparar estudantes para o mercado de trabalho, embora o sistema capitalista não ofereça possibilidade de trabalho para todos/as. Nesse sentido, o empreendedorismo é frequentemente apresentado, ora como possibilidade de obter recursos financeiros para a massa de desempregados – “empreendedorismo de sobrevivência”, ora como se fosse algo para tirar o pobre estudante da “ignorância”. O próprio eminente relator do famoso Parecer CNE/CEB nº 11/2000, que trata das “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos”, professor Carlos Roberto Jamil Cury, nega esse sentido empreendedor:

 “A função qualificadora, como está dita no Parecer, quer dizer, quando você preencheu todas as condições de uma educação formal superou a necessidade, por que o sujeito não tem o direito de desenvolver um talento pessoal, um talento próprio? Então eu gostaria de tocar violino. Vou aprender violino. […] É esse o sentido e não o de simplesmente dizer que agora você tem que ser empreendedor, esse tipo de coisa. Não tem nada a ver com isso. Pelo menos não era esse o sentido.” (FERNANDES & JULIÃO, 2021, p. 12)

2- Tecnicismo e pragmatismo: currículos mais técnicos e profissionalizantes, em detrimento de uma formação mais ampla e cidadã. Com isso, a formação básica vai sendo condicionada ao “bom êxito prático”, dispensando-se os fundamentos epistemológicos, inclusive sobre as origens do empreendedorismo, em contraponto ao “exército industrial de reserva”. Assim, o Estado cerceia a liberdade de elaboração do PPP, em detrimento da hegemonia neoliberal:

“[…] o que se observa nas escolas de EJA, é uma suposta solidariedade pragmática, principalmente no que é determinado pelos gestores. O PPP deveria originar-se, não como obrigação legal, mas como fruto de um debate fraternal e respeitoso de ideias, conscientes dos diferentes caminhos epistemológicos trilhados por todos/as em cada unidade escolar.” (BRANDÃO, 2023)

3- Gerencialismo e avaliação: A gestão das escolas passou a ser mais centralizada e burocrática, com foco em indicadores de desempenho e avaliações padronizadas e externas, ao priorizar a gestão de desempenho/otimização, ao invés da participação democrática. Isso pode ter limitado a autonomia das escolas de EJA, no que tange a gestão participativa e/ou de seus projetos e planejamentos coletivos, para atender às necessidades da classe dominantes.

4- Redução de investimentos: Os investimentos públicos na educação, especialmente na EJA, foram reduzidos, o que impactou a qualidade do ensino, a infraestrutura das escolas e a remuneração dos professores.

5- Privatização: Houve um aumento da participação de empresas privadas na oferta de educação, com a criação de escolas particulares e a terceirização de serviços nas escolas públicas.

6- Individualização do ensino: A ênfase passou a ser na responsabilidade individual dos/as estudantes pelo seu aprendizado, reforçada por mecanismos competitivos e de premiações, com menos foco em projetos colaborativos e/ou uma pedagogia mais dialógica.

Consequências:

Exclusão: As reformas neoliberais podem ter excluído ainda mais os jovens, adultos e idosos, com menos recursos e oportunidades, aprofundando as desigualdades sociais e a “desescolarização”, apesar dos esforços em chamada pública.

Precarização do trabalho docente: A precarização das condições de trabalho dos professores pode ter levado à desmotivação, ao adoecimento e à saída de profissionais qualificados na EJA.

Dificuldade em atender às necessidades específicas: A padronização dos currículos e das avaliações, consoante com as dificuldades impostas na elaboração dos PPP construídos de forma coletiva, pode ter dificultado a adaptação da EJA às necessidades e características inclusivas dos/as estudantes, que muitas vezes possuem trajetórias de vida diferentes, para além de suas necessidades especiais.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Espera-se que este texto possa ampliar a reflexão sobre como o neoliberalismo ameaça a participação democrática nas escolas de EJA, bem como os referenciais da educação popular. Assim, concordamos que a conclusão de Quissini (2016, p.171) nos parece bem atual e adequada:

“[…] os referenciais da educação popular e neoliberal são irreconciliáveis e, portanto, não podem compor nenhum tipo de equilíbrio no delineamento do horizonte pretendido pelas políticas de EJA, sob pena de que esse suposto equilíbrio se constitua num desequilíbrio permanente, no qual as bases que sustentam a educação popular permaneçam sempre em desigualdade em relação ao referencial hegemônico, afinal essa é a condição daquilo que é hegemônico.”

As reformas neoliberais na EJA, portanto, têm sido criticadas por diversos setores da sociedade, que as consideram um ataque ao direito à educação e um retrocesso em relação aos avanços conquistados nas últimas décadas. Os críticos argumentam que a educação deve ser vista como um direito social e não como uma mercadoria, capaz de gerar lucro, e que a escola deve ter um papel fundamental na formação de cidadãos críticos, conscientes e emancipados.

 

PALAVRAS-CHAVE: Política educacional; Neoliberalismo; Educação de jovens e adultos

 

Referências

BRANDÃO, R. E. A.. A implementação do Programa Saúde na Escola no território de Manguinhos (RJ): estratégias de privatização na política pública. 2014, 144 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Educação Profissional em Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Rio de Janeiro, 2014. Disponível em: <https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/8954>. Acesso em: 24 out 2024.

____________. A SOLIDARIEDADE NA CONSTRUÇÃO DO PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO NAS ESCOLAS DE EJA: entre reformas, revolução e silêncio. 2023. Disponível em: <https://roberto.bio.br/blog/?p=447>. Acesso em: 24 out 2024.

FERNANDES, A. da P., JULIÃO, E. F. (2021). 20 anos das diretrizes curriculares nacionais da educação de jovens e adultos – conversa com Carlos Roberto Jamil Cury. E-Mosaicos, 10(24), 81–95. <https://doi.org/10.12957/e-mosaicos.2021.57738>. Acesso em: 24 out 2024.

QUISSINI, Á. R.. As políticas de EJA na América Latina em diálogo com a educação popular e oposição ao referencial neoliberal: leituras entre Brasil e Argentina. 2016. 185 f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade da Região de Joinville, 2016.

[1] Professor de Ciências e Biologia, Mestre em Educação Profissional em Saúde. edu@roberto.bio.br.

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