Maria das Mercês Navarro Vasconcellos
Servidora Pública na função de tecnologista em Saúde Pública na ENSP/ Fiocruz
04/08/2020
(…)Não há projeto para diminuir a violência nem a desigualdade social. O capitalismo avança e o povo padece e diminui ainda mais a distribuição de renda e aumenta a pobreza e a violência contra os moradores de Manguinhos em tempos de pandemia. Não é só para os moradores de Manguinhos, mas o Brasil inteiro. (…) o capitalismo mata (…). Em todo esse desastre fica algo importantíssimo de positivo: Estamos fazendo tudo que eles não querem. Estamos aprendendo a caminhar juntos.” Sr Beserra*
Para ajudar a responder a questão apresentada no título desse texto nos valeremos da sabedoria do Sr Beserra que sempre nos ensina que nunca devemos nos perder olhando apenas para as consequências dos problemas. Na luta pela produção de saúde em Manguinhos, ele nos ensina que a solução dos problemas só encontramos se conseguimos enxergar as suas causas. Ele também nos ensina que a principal causa dos problemas que enfrentamos trabalhando pela produção de saúde na favela é o capitalismo. Segundo diz Sr Beserra nas palavras registradas acima: o capitalismo é violento, ele mata.
Vamos recorrer também a palavras de um cientista que dedicou toda a sua vida a estudos sobre o Sistema Capital. Esse cientista chamava-se István Mészáros. Há 20 atrás, Mészáros escreveu um livro de 1.093 páginas intitulado “Para além do capital”. Nesse trabalho, o autor defende exaustivamente a tese de que a atual crise do capitalismo tem uma natureza diferente das crises anteriores. Ele argumenta que as anteriores foram “crises cíclicas” que fazem parte do capitalismo, enquanto que a dos nossos dias seria uma crise estrutural do “sistema capital”, diferenciando-se, portanto, das “crises cíclicas” necessárias à sua manutenção. Ele sustenta essa tese com base principalmente de análises sobre a incompatibilidade entre a finitude do planeta, tanto como fonte de recursos materiais quanto na sua capacidade de absorver resíduos, e a característica do Sistema Capital de necessitar manter sempre em expansão a sua capacidade de explorar a natureza e os trabalhadores.
Ficam cada vez menos racionalmente justificáveis, em nome da saúde do mercado, dos estoques reguladores e das taxas médias de lucro do capital, as políticas que induzem a não produção de alimentos e remédios etc. ou destruição de toneladas dos mesmos. Trata-se de políticas criminosas que produzem, por problemas ligados direta ou indiretamente à fome e subnutrição, 30 milhões de mortes anualmente (RAPOSO, 2000:20). Também é insuportável o fato de que 4,5 bilhões de pessoas, especialmente nos países pobres, tenham para consumir apenas 14% da produção mundial e 1,5 bilhão se apropriem de 86%. (FRIGOTTO, 2001, p.36) (grifo nosso)
Meszáros (2002) chegou à conclusão de que a sobrevivência do capitalismo depende de um processo de dominação cada vez mais intenso − não só criando nas sociedades a necessidade de consumo, mas também investindo na guerra entre países para lhe garantir de forma mais segura a venda de produtos – que, nesse caso, são basicamente armas. A democracia torna mais difícil para o capital controlar os governos em função de seus interesses e a despeito da desgraça das populações. Portanto, “[…] el dilema neoliberal no es entre estado e mercado, sino entre democracia y mercado. Y sus representantes non vacilan en sacrificar la primera em aras del segundo”. (BORON, 2006, p.148).
É como afirma o Sr Beserra na epígrafe desse texto: “capitalismo mata”. Esse processo produtor de barbárie se agudiza com a pandemia da Covid -19 no atual momento histórico. Essa pandemia mata e degrada a vida muito mais na favela do que em outros territórios da cidade do Rio de Janeiro, por exemplo:
A Fundação Oswaldo Cruz lança, nesta segunda-feira (13/7), o primeiro Boletim Socioepidemiológico da Covid-19 nas Favelas. De acordo com a publicação, o baixo número de casos e óbitos registrados nos bairros com “alta e altíssima concentração de favelas” se contrapõem às taxas de letalidade nessas regiões, que chegam a ser o dobro em relação aos bairros que não têm favelas.
As pessoas que moram nas favelas representam a maior parte da população brasileira que é vulnerabilizada pelos processos societários em curso. Processos, intensificados durante a pandemia da Covid-19, que passam pela apropriação privada de recursos públicos.
(…)os ricos ficaram ainda mais ricos durante a pandemia. A política monetária praticada pelo Banco Central há anos e agravada durante os últimos meses está relacionada com mecanismos que a Auditoria Cidadã da Dívida vem evidenciando e combatendo. (…) o Banco Central (BC) também vem transferindo dinheiro público aos bancos por meio das operações de “swap cambial” (R$ 63,5 bilhões somente de janeiro a maio de 2020) e do pagamento da remuneração diária da sobra de caixa dos bancos, nas chamadas “operações compromissadas”, cujos juros custaram cerca de R$ 1 trilhão nos últimos 10 anos. (…) Dia 23/3/2020 o BC anunciou a entrega de mais R$ 1,2 Trilhão aos bancos (sob a falsa desculpa de que esse dinheiro iria para empréstimos ao setor produtivo), e em maio foi aprovada a Emenda Constitucional 106, autorizando o BC a entregar trilhões aos bancos e investidores, comprando papéis podres acumulados na carteira deles, sem limite algum, às custas de mais dívida pública que será paga pelo povo. Auditoria Cidadã da Dívida, 30/07/2020
Os recursos públicos que se acumulam nas mãos de tão poucas pessoas no Brasil são recursos que faltam para garantir que a maioria da população do país tenha acesso a direitos básicos, como o direito à vida, à saúde e educação. Em tempos de pandeia da Covid-19 isso significa, por exemplo, o direito a um atendimento facilitado nos serviços de saúde e assistência social. Direito a condições de participar de processos de Educação
a Distância e a uma renda emergencial que pudesse efetivamente garantir a quarentena, a saúde mental, a segurança alimentar e nutricional.
Nesse contexto, no auge da pandemia, os shoppings são considerados essenciais pela Prefeitura Rio de Janeiro e abrem as suas portas. Esse fato tem sido utilizado como para forçar a reabertura das escolas com o argumento de que elas também deveriam ser consideradas essenciais. A questão que fica é: estamos falando sobre o que é essencial para o quê? E para quem? As respostas para essas perguntas podem ser floreadas, mas o argumento definidor dessa essencialidade é força da engrenagem do Sistema Capital forçando a roda a rodar sem se importar com o número de vidas que isso vai custar. Afinal, uma lição já aprendemos, como disse o Sr Beserra: capitalismo mata. Mas também aprendemos que vai morrer muito mais morador da favela do que do Leblon. Portanto, a resposta para a pergunta no título do texto é no contexto da pandemia da Covid -19 o que é mais essencial na cidade do Rio de Janeiro é o Sistema Capital. Ele é que faz abrir o shopping para mover o comércio e abrir a escola para depositar crianças para que os pais e avós possam sair para trabalhar e assim tentar garantir a sobrevivência que não foi garantida pelos recursos públicos. Recursos públicos que compõe a riqueza produzida pelos trabalhadores, mas dividida em sua maior parte apenas entre os que detém o poder econômico e político utilizando as armas conforme explicou Mészáros nos livros aos quais recorremos nesse texto. Então, para responder a pergunta do título do texto precisamos primeiro responder: o que é essencial a sociedade manter: a engrenagem do Sistema Capital, explicada por Mészáros, ou a proteção da vida de todas as pessoas e não apenas entre alguns dos sócios que a compõe e que poderão permanecer em quarentena?
Referências
Auditoria Cidadã da Dívida. Fortuna de bilionários cresce durante a pandemia. 30 de julho, 2020. Disponível em https://auditoriacidada.org.br/fortuna-de-bilionarios-cresce-durante-a-pandemia/. Boletim socioepidemiológico da Covid-19 nas Favelas – Ed 1. Disponível em https://portal.fiocruz.br/documento/boletim-socioepidemiologico-da-covid-19-nas-favelas-ed-1
BORON, Atílio A. Después Del saqueo: El capitalismo latinoamericano a comienzos del nuevo siglo. In: Política y movimientos sociales em el mundo hegemônico: lecciones desde África, Ásia e América Latina / compilado por Atílio A. Boron y Gladys Lechini. 1 ed. Buenos Aires: Consejo Latinoamericano de Ciências Sociais. CLACSO, 2006.
FRIGOTTO, G. (orgs.). A cidadania Negada. Políticas de exclusão na educação e no trabalho. 2ª ed. São Paulo: Cortez; Buenos Aires: CLACSO, 2001.
MÉSZÁROS, István. A teoria da alienação. São Paulo: Boitempo, 2006.
__. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo, 2002.
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*José Beserra de Araújo. Morador de Manguinhos – Caminhoneiro aposentado – 76 anos. Conselheiro do Conselho Gestor Intersetorial de Manguinhos (CGI) e militante do Movimento das Comunidades Populares (MCP) – Trecho de texto do Sr. Beserra utilizado no Seminário do Fiopromos/Fiocruz realizado em 25/06/2020. Disponível em <https://drive.google.com/drive/folders/1TZaLMQmgZ-F6LF-pOe-HI_F0sGIj2_yf>