10 LIÇÕES QUE DEVERIAM FAZER PARTE DA FORMAÇÃO DOCENTE PARA A EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS

por Roberto Eduardo Albino Brandão[1]

  1. A EJA (educação de jovens e adultos) como modalidade de educação que resgata direitos e sua militância política: ter consciência de que, no Brasil, a EJA sempre foi destinada aos subalternizados dessa sociedade, que permanece e amplia sua capacidade de exclusão e geração de desigualdades. Mas saber disso não é suficiente para contrapor aos que entendem a EJA como “gasto” e não como investimento e/ou resgate de direitos. É preciso esforço de mobilização coletiva, para agir na transformação da realidade, em favor das classes populares. Ou seja, é fundamental participar da militância política na EJA, especialmente o movimento Fórum EJA.
  2. A luta constante, por democracia nas escolas, é árdua, porém fundamental – não adianta proibir, tem que discutir: sabe-se que a escola democrática não persegue politicamente professores, por seu pensamento divergente ou por sua base epistemológica, tão pouco intimida estudantes em seu livre exercício de pensar e/ou comunicar, ao contrário, incorpora tais elementos em seu fazer pedagógico, no sentido de criar unidade na diversidade. Os avanços democráticos nas escolas básicas, como a eleição direta para diretor de escola, s.m.j., não foram suficientes para introduzir discussões políticas mais amplas (processos civilizatórios), tão pouco para inviabilizar os discursos que criminalizam docentes e discentes em razão de determinados posicionamentos políticos. Assim, a eleição direta para direção de escola, por exemplo, se constituiu em “verniz” de democracia, onde os detalhes/fundamentações dos “planos de gestão” não são discutidos com a comunidade escolar, quiçá construídos coletivamente com os estudantes. Faltam espaços para o exercício verdadeiramente democrático e/ou formação para cidadania autêntica, ou seja, onde não se excluam segmentos, onde a metodologia e a pauta do que será discutido sejam construídos, desde o início, com seus integrantes/participantes, onde o cargo eletivo represente de fato os interesses dos eleitores, em estreita articulação do trabalho da escola com a democratização da sociedade.
  3. Na luta política, em favor da classe trabalhadora, encontramos trabalhadores que vestem a camisa da classe dominante: isso se torna evidente quando a política pública (educacional) é executada no chão das escolas, através de micropoderes, sem qualquer possibilidade de diálogo com o público envolvido, no sentido do “tem que fazer”, “são ordens e temos que cumprir” ou, ainda, “eu não concordo, mas tem que…”. No setor privado, o público da EJA enfrenta as mesmas dificuldades, que são elementos constitutivos de um currículo que deveria estar presente em todas as disciplinas, sendo capaz de gerar reflexões sobre a estrutura social vigente (hierarquizada) e sua forma de superação. Percebe-se o fiel cumprimento aos ditames da ordem opressora/dominante, por exemplo, na defesa de cursos profissionalizantes, de baixa exigência intelectual, voltados para o mercado/empreendedorismo, para o público da EJA, pressupondo um caráter compensatório e assistencialista. Não se trata, porém, de apenas criticar tal perspectiva pedagógica-hegemônica. É preciso perceber as relações econômicas, em todas as suas dimensões, bem como os privilégios, entendendo as contradições do mundo do trabalho, para assumir a perspectiva de classe em si, através do movimento coletivo (ampliado) de “reflexão-ação-reflexão”.
  4. Jornal estudantil como instrumento de organização dos estudantes-trabalhadores: A baixa autoestima, a dificuldade de se expressar/comunicar (em linguagem formal e letramento digital), o medo de fazer crítica, e o comodismo, por parte dos estudantes jovens, adultos e idosos, apresentam-se como desafios aos docentes que trabalham na EJA, em uma perspectiva crítica-não reprodutivista. No entanto, o próprio medo dos profissionais da educação básica em subverter a lógica antidialógica e antidemocrática, dentro das escolas, se reproduz e vai sendo transmitido aos estudantes de duas formas. A primeira é o mudismo, onde os profissionais se calam, evitando qualquer manifestação política dentro dos espaços escolares, constituindo um currículo oculto de desesperança e sofrimento psíquico. A segunda é a ação direta sob os estudantes, no sentido da intimidação, da humilhação e/ou da criminalização do movimento estudantil autônomo e crítico. Assim, um jornal que traga essas vozes (silenciadas e/ou invisibilizadas), sem censura e/ou controle por parte dos docentes, é uma experiência rica em possibilidades de diálogo/democracia no espaço escolar. Não se pode menosprezar a iniciativa de um jornal estudantil, quando estudantes tomam consciência de seu real potencial transformador.
  5. A escola unitária e o compromisso principal com o público (jovens, adultos e idosos): ideal de formação humana, a escola unitária leva em conta a “elaboração unitária de uma consciência coletiva”, capaz de romper com a estrutura social que permite a coexistência de escolas de ricos/governantes/opressores e escolas de pobres/governados/oprimidos. O profissional que trabalha na EJA, além de defender a universalização efetiva da escola e a educação unificada, deve apresentar uma relação afetiva e de interesse por esses educandos.
  6. A Pedagogia Histórico Crítica (PHC) a serviço da superação da sociedade de classes: considera-se que o Homem produz sua própria história, dentro da confluência de forças na luta de classes, na concretude do modo de produção capitalista.
  7. Não abrir mão dos momentos de estudo, a partir da realidade de cada escola: não se pode abrir mão das conquistas historicamente adquiridas, e uma delas é a formação continuada em serviço na EJA. Trata-se de um momento próprio reservado a reflexão coletiva, portanto aos desafios que o coletivo de professores julga importantes. Além disso, há uma diversidade de concepções teórico-metodológicas que perpassam a EJA, algumas inclusive conflitam entre si. O conflito ou a discordância nasce da ausência de um amadurecimento das reflexões teóricas profundas/radicais, e, portando, da desvalorização dos momentos de estudo, que irá repercutir negativamente nas ações e planejamentos pedagógicos. É claro que, quanto mais curioso, quanto maior for o prazer em estudar, quanto maior o interesse em se manter atualizado em relação à sua área de atuação, mais eficiente será a co-laboração desse profissional em produzir coletivamente/qualitativamente novos conhecimentos sobre o trabalho na EJA.
  8. PPP (projeto político pedagógico) construído “com a EJA” e não “para a EJA”: além de ser uma obrigação legal, o PPP de uma escola, principalmente em tempos de intolerância religiosa, negacionismo e pseudoneutralidade política, é o único instrumento que, em estabelecer diretrizes básicas de organização e funcionamento do trabalho escolar, deve ser fruto do saber, do querer e do fazer de todos/as. Em linhas gerais, tendo em vista que esse processo é demorado e envolve uma escuta atenta de todos/as, inclusive no que se refere a EJA, através de metodologia que garanta isonomia nessa participação plena, as escolas adiam ao máximo a elaboração do PPP ou investem em projetos pedagógicos anuais temáticos, confundindo-os com PPP.
  9. Quem não pensa politicamente a EJA está condenado a servidão do projeto político neoliberal: sabe-se que a escola pública cumpre sua função social, inclusive, quando profissionais criticam e apresentam alternativas a política educacional vigente, seja através de um cartaz, ou apoio a um jornal estudantil, ou simplesmente explicita uma determinada visão de mundo, que faz parte da liberdade de manifestação política. Não se trata de defender partido político A ou B, e sim da multiplicidade de visões de mundo e suas relações sociais. No entanto, há profissionais da educação que dizem abertamente: “não sou político” e/ou “não faço política”. Com isso, no contexto atual, embora a escola de EJA encontre muitas limitações para propor novas políticas e/ou adaptá-las, para que atendam (melhor) sua especificidade, faz-se necessário que os profissionais assumam suas perspectivas ético-políticas, principalmente os que agem na contra hegemonia dos processos políticos antidialógicos e antidemocráticos.
  10. A vida acima do lucro: a hegemonia do modo de produção capitalista impõe que tudo se transforme em mercadorias/serviços produtivos ao capital, inclusive a formação escolar entra nessa “esteira produtiva”, para atender as necessidades do mercado, que pressupõe a classe dominante extraindo mais valor o tempo todo, no sentido de acumular cada vez mais riquezas. O docente da EJA precisa externar seu ponto de vista, doa a quem doer, reconhecendo outros pontos de vista, e possibilitar boas sínteses (dialética), preferencialmente de forma coletiva.

Talvez esse seja meu último texto atuando na EJA, desde 1998, pois, até o presente momento (10/01/2022), fui injustamente retirado da escola (de EJA) onde atuava, em razão dos posicionamentos políticos em defesa das lições acima citadas. Aproveito esse pequeno texto para agradecer as centenas de pessoas que nos enviaram manifestações de solidariedade (de classe), bem como as entidades: Frente contra o Ensino Remoto/EaD na Educação Básica/Ensino Superior, Coletivo Educação & Insubmissão – Extensão da UFRJ, Fórum EJA Rio, Museu da Vida – Fiocruz, Projeto de extensão – Universidade e Escola: trocas de saberes e práticas – UFRJ, Grupo de estudos em educação ambiental crítica e pedagogia histórico-crítica na escola pública: formação docente e práticas pedagógicas – UERJ e Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do Estado do RJ – SEPE/RJ. Essa luta continua e é de todos/as!

[1] Mestre em Educação Profissional em Saúde, Professor de Ciências/Biologia. www.roberto.bio.br

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